Compartilhando remédios na hora da quinhampira
A importância dos benzimentos e plantas medicinais para lidar com os impactos da COVID-19 em São João Batista e Cucura São João
Cucura São João / 22 de julho de 2021
No dia 22 de Julho de 2021, a equipe de pesquisadores visitou duas comunidades vizinhas no Rio Tiquié, São João Batista e Cucura São João. Na comunidade de São João Batista, entrevistaram o Conselheiro Local de Saúde Indígena, João Batista Sampaio Lana. Na comunidade de Cucura São João, por sua vez, entrevistaram a liderança Sabino Ribeiro Chagas.
João Batista Lana pegou COVID-19 duas vezes e ainda sente os efeitos negativos da doença, tanto em seu corpo, quanto na vida da comunidade em geral. Conta que, desde que a COVID-19 chegou na comunidade, sente que nada mais está normal:
“Eu não sinto nada normal. Antes do ocorrido, nós éramos unidos. Trabalhávamos juntos, íamos pescar, íamos na caçaria, levávamos quinhapira no centro comunitário e comíamos juntos. Agora não sinto mais como era antes. No pensamento do universo dos Desana, os brancos estão tinguejando, como se faz com os peixes no rio. Por isso, o corpo, na realidade, parece normal. Mas, na espiritualidade, invisivelmente, se sente morto. Eu não me sinto mais bem, não me sinto como antes. Antes era sadio toda comunidade. Agora continua com as dores: dores no corpo, dores na cabeça, dores nos ossos, dores após o sol, dores após a chuva. À noite, nem vamos pescar mais, ficamos na rede, deitados. Aí, quando as dores passam, dão um intervalo, nos levantamos e sentimos como se fosse normal.”
A comunidade ficou sabendo da COVID-19 por meio de notícias na televisão e, desde então, os moradores começaram a preparar remédios tradicionais, que compartilhavam no centro comunitário pela manhã, e passaram a realizar benzimentos com cigarro diariamente para proteção. Segundo ele, o benzimento foi a prática de cuidado mais importante para evitar os óbitos por COVID-19. Além disso, os moradores decidiram que ninguém mais iria visitar outras comunidades para não se infectar. No entanto, o Conselheiro Local contou que, “mesmo sabendo que a COVID era uma doença perigosa e que ia chegar na comunidade, a doença chegou silenciosamente e, quando vimos, já estava dentro da comunidade.”
A maior parte da comunidade pegou COVID-19, mas poucas pessoas da comunidade foram testadas. A Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena (EMSI) justificava que havia poucos testes rápidos, pois eram muito caros. No entanto, as pessoas que testaram positivo não quiseram ser removidas para a cidade de São Gabriel da Cachoeira; preferiam tratar-se na comunidade com remédios tradicionais e benzimentos.
Sabino Ribeiro Chagas contou que as pessoas da comunidade de Cucura São João também preferiram tratar-se na comunidade com medicamentos tradicionais e benzimentos. A liderança hupd’äh relatou que foi infectado pela COVID-19 quando visitava a cidade de São Gabriel da Cachoeira com sua família, mas foram tratados na comunidade. Para o tratamento, combinaram os benzimentos e o uso de remédios caseiros com o uso de paracetamol deixado pela EMSI na comunidade. Até hoje, todo dia de manhã, as famílias continuam a levar remédio caseiro para tomar coletivamente na hora da quinhapira.
Sabino Chagas ressaltou a importância dos benzimentos para o tratamento da COVID-19:
“Na aldeia de Cucura São João tem três benzedores. O benzimento deles ajuda bastante, cura as pessoas. Quando a equipe falou para nós que estava vindo uma doença ruim chamada COVID-19, os velhos sentaram e falaram assim: ‘a doença é dos próprios brancos. O COVID vem das grandes cidades'”.
Nas comunidades de São João Batista e Cucura São João, bem como em outras 7 comunidades da região de abrangência do Pólo-Base São José II, a equipe realizou um exercício de avaliação coletiva da qualidade dos serviços, usando uma ferramenta chamada ‘Cartão de Pontuação Comunitária’. Este exercício permitiu mapear os aspectos onde as comunidades perceberam uma melhora na qualidade da atenção em decorrência da resposta à pandemia, e onde consideraram que a qualidade do serviço havia piorado ou ficado igual. Também permitiu identificar onde a pontuação dada por uma comunidade espelha o resultado geral da região, e onde tem diferenças importantes entre as comunidades na avaliação que fazem dos serviços. Para a avaliação, as comunidades deveriam atribuir uma nota de 1 a 6 para diferentes indicadores da qualidade da atenção em saúde, sendo 1 (péssimo) e 6 (ótimo).
A baixa capacidade de diagnóstico da EMSI aliada à avaliação ruim da comunidade quanto à internação hospitalar, cuja nota atribuída foi 2,0 (ruim), revelam problemas no atendimento que se agravaram durante a pandemia. A nota regional dada pelas comunidades para internação hospitalar foi 2,8 (regular), sendo que a nota dada pelas comunidades do Tiquié foi 2.9 (regular). Apesar de ter sido avaliada como regular, a integração com a CASAI e a rede hospitalar (média e alta complexidade) tiveram piora na avaliação regional, já que em 2018 a nota atribuída foi 2,5 (bom) e em 2021 a nota caiu para 2,0 (regular). No que diz respeito à urgência de promoção de integração da EMSI com benzedores, São João Batista aproxima-se da avaliação regional de que tal integração é ainda ruim, já que a nota atribuída para esse indicador foi 1 (péssimo), enquanto a média regional classificou como ruim (1,9) o indicador de interculturalidade na saúde indígena. São João Batista e Curura São João avaliaram também como péssima a questão do acesso a água potável e saneamento, assim como a totalidade das comunidades que participaram do exercício do Cartão de Pontuação Comunitário, já que a nota regional para esse item foi 1,4 (péssimo).
Nesse sentido, é prioritária a promoção de maior diálogo intercultural em saúde, já que a, para a comunidade, o sucesso nos tratamentos de Covid deram-se pela ampla adesão aos benzimentos e remédios caseiros, ou seja à medicina indígena.