Polo-base de São José II

A avaliação da Saúde Indígena feita em 2021 pelas comunidades da área de abrangência do polo-base de São José II pela metodologia do Cartões de Pontuação Comunitários

Introdução

O projeto ‘Comunicação Intercultural para uma resposta efetiva à COVID-19 nos Territórios Indígenas Amazônicos’ (SSL-FOIRN-IDS) desenvolveu-se a partir do engajamento de uma equipe multidisciplinar, indígena e não indígena, em uma pesquisa-ação realizada em 14 comunidades da área de abrangência do polo-base de São José II (DSEI-ARN) e da construção da Plataforma de Monitoramento Comunitário da Qualidade da Saúde Indígena (PMCQSI). Em 2020, a iniciativa partiu de participantes do Fórum de Saúde Indígena do Rio Negro (FSIRN) que, em meio ao avanço crescente de casos e óbitos pela COVID-19 na região, à ausência de dados epidemiológicos confiáveis e às dificuldades crescentes de atuação das equipes de saúde, decidiram realizar um processo de monitoramento de base comunitária que envolvesse também a avaliação da qualidade da atenção à saúde prestada pelo DSEI-ARN através da metodologia do ‘Cartão de Pontuação Comunitária’ (Scorecard). 

A pesquisa-ação e a plataforma tiveram como objetivo identificar as principais barreiras a uma comunicação eficaz entre os serviços de saúde do governo e as comunidades indígenas da região (consideradas particularmente vulneráveis à COVID-19) e traduzir as principais lições em estratégias de comunicação intercultural para garantir (1) acesso a informações confiáveis sobre prevenção e tratamento da COVID-19; (2) confiança e cooperação entre comunidades e profissionais de saúde não indígenas para rastreamento e encaminhamento de contatos; e (3) monitoramento de resposta e responsabilidade social.

O presente documento reúne as principais lições e conclusões desse processo que tomou como base dados de 14 entrevistas semi-abertas, as notas atribuídas pelos/as interlocutores em 7 Cartões de Pontuação Comunitários, e as análises feitas pelas lideranças indígenas que conduziram a pesquisa-ação no âmbito regional. A avaliação das comunidades contemplou também a comparação do período “anterior à pandemia de Covid-19” e “durante a pandemia de Covid-19”, havendo a atribuição de notas de 1 a 6 pontos – onde 1 equivale a “péssimo” e 6 a “ótimo” – para 21 indicadores da qualidade da saúde. As comunidades que realizaram a avaliação da qualidade da saúde indígena pelo Cartão de Pontuação Comunitário (CPC) foram as seguintes: Santa Rosa (1 CPC), São Joaquim (1 CPC), São Felipe e Morro do Beija-Flor (1 CPC), Taracuá Igarapé (1 CPC), São João Batista e Cucura São João (1 CPC), Pirarara poço e Acará Poço (1 CPC), São José II (1 CPC). 

Figura 1. Cartão de Pontuação das Comunidades em 2021
Figura 2. Comparação entre Cartões de Pontuação de 2016, 2018 e 2021

Foi feita também a comparação dos dados obtidos em 2021 com dados da pesquisa Vozes desiguais (SSL/FOIRN/IDS), realizada na área de abrangência do polo-base de São José II entre 2017 e 2018 e que contou também com a avaliação comparativa da qualidade da atenção em saúde por meio do Cartão de Pontuação Comunitário. s conselheiros de saúde, AIS, conhecedoras de medicina indígena, EMSI atribuíram notas de 1 a 4, onde 1 equivaleu a ‘ruim’ e 4 a ‘muito bom’, para 19 indicadores da qualidade da saúde indígena. Devido à diferença entre as escalas e indicadores utilizados para os Cartões de Pontuação Comunitários de 2018 e de 2021, foi necessário agregar indicadores e compatibilizar as escalas. Por isso, a comparação e a identificação de melhora e/ou piora em determinados indicadores da qualidade da atenção à saúde entre os anos de 2016, 2018 e 2021 estabeleceu-se através da escala de 1 a 4, onde 1 equivaleu a ‘ruim’ e 4 a ‘muito bom’, e 7 indicadores prioritários, sendo eles: 1. Comunicação intercultural; 2. Vazio assistencial/ cobertura das equipes; 3. Interculturalidade na saúde indígena (medicinas tradicionais e biomedicina); 4. Apoio ao AIS; 5. Integração a serviços de média e alta complexidade (resgate, CASAI, hospital); 6. Apoio aos conselheiros de saúde; 7. Saúde da mulher. 

Figura 3. Cartões e Pontuação Comunitários: comparativo 2016 e 2018
Figura 4. Cartões de Pontuação Comunitários: comparativo 2016, 2018 e 2021

Através do presente documento, será possível a lideranças indígenas, gestores e profissionais de saúde identificarem áreas prioritárias para a promoção de melhorias, bem como áreas em que está havendo um bom desempenho das ações e estratégias das EMSI.

Figura 5. Comparativo de Cartões de Pontuação Comunitários entre as comunidades do rio Tiquié e rio Castanho para o ano de 2021

Comunicação intercultural

Uma das principais barreiras para a efetivação de uma melhor atenção à saúde encontra-se na comunicação intercultural. Para a análise deste indicador, consideraram-se as informações qualitativas obtidas através das entrevistas e também as notas atribuídas para o item “Qualidade da comunicação” dos Cartões de Pontuação Comunitária. A qualidade da comunicação em saúde foi considerada “ruim” (2,6 pontos) pelos/as interlocutores da pesquisa, apesar de ser possível observar uma melhora, já que a nota atribuída em 2018 foi de 1,8 pontos. No início da pandemia, a melhoria da estrutura da rede de comunicação em saúde foi uma prioridade, tendo sido instalados novos equipamentos de radiofonia e, em algumas aldeias na região do Tiquié, pontos de internet. Entende-se que essa melhoria tenha gerado a avaliação positiva de comunidades que têm uma boa comunicação com o DSEI-ARN, como São José II, Pirarara Poço e Acará Poço. A melhoria da estrutura da rede de comunicação, entretanto, não resultou numa maior constância de interlocução com as EMSI. 

Sete das quatorze comunidades que participaram da pesquisa relataram problemas graves quanto à comunicação com as EMSI e DSEI-ARN. As más condições dos equipamentos de radiofonia e/ou a ausência de profissionais no polo-base ou DSEI-ARN que possam responder às chamadas das comunidades são fatores que geram uma barreira na comunicação em saúde, que foi enfatizada pelos interlocutores de Boca da Estrada e São Felipe do Castanho, dentre outras. Além disso, a dificuldade de compreensão linguística nas interlocuções com as EMSI foi enfatizada pelas comunidades de povos considerados como de recente contato: Hupd’äh e Yuhupdëh. Na comunidade Hupd’äh de Taracuá Igarapé, segundo o AIS, muitos anciões deixam de procurar a EMSI por não entenderem o que os profissionais de saúde falam. Além disso, os problemas de comunicação em língua portuguesa e/ou Tukano tornam-se graves durante as internações na CASAI e hospitais de São Gabriel e/ou Manaus, tendo sido essa uma dificuldade destacada não só pelas comunidades Hupd’äh e Yuhupdëh, mas também pela aldeia de Pirarara Poço. 

Os interlocutores de São Lourenço apontaram a não participação do AIS no planejamento das ações e, especificamente, daquelas voltadas ao enfrentamento da COVID-19, como um problema sério de comunicação em saúde. Os entrevistados de São Lourenço esperavam ter recebido da EMSI orientações para a prevenção e cuidados à COVID-19, mas as mesmas não foram repassadas. Assim como São Lourenço, os interlocutores de Serra do Mucura relataram insatisfação quanto à ausência de realização de palestras de informação/ educação em saúde pela EMSI. Deve ser mencionado também que nenhuma comunidade manifestou ter tido acesso aos dados epidemiológicos sobre casos ou óbitos por Covid-19 e nem relativos a outras doenças. Apesar dos constantes preenchimentos de formulários para registro de dados pelo AIS e EMSI, as informações de saúde não retornam para as comunidades, prejudicando, assim, medidas coletivas de prevenção. Por isso, o indicador “Coleta de dados” foi avaliado como ruim pela maioria das comunidades e recebeu 2,1 pontos na média geral do Cartão de Pontuação Comunitária. 

Mensagem: A melhoria na qualidade da comunicação em saúde depende não somente de melhoras na infraestrutura de comunicação(com mais rádios comunicadores e pontos de internet), mas também da melhoria do fluxo de comunicação com quem está nas pontas (principalmente AIS e lideranças locais), prevendo o retorno de dados e informações epidemiológicas relevantes para as comunidades. Soma-se a isso a necessidade de melhor qualidade na tradução linguística, principalmente para pacientes Hupd’äh e Yuhupdëh, em todos os níveis de complexidade. Por fim, é importante o acompanhamento permanente das chamadas via radiofonia das comunidades. 

Vazio assistencial e qualidade dos atendimentos nas comunidades

A qualidade dos atendimentos prestados pelas EMSI foi avaliada pelos/as interlocutores da pesquisa através das entrevistas e da atribuição de notas pelo Cartão de Pontuação Comunitário. O vazio assistencial, que corresponde aos períodos de ausência de EMSI no polo-base e aos intervalos entre as visitas das EMSI nas comunidades, foi destacado como o principal problema que afeta a boa qualidade dos atendimentos. Muitas comunidades ressaltaram também que a “pressa”, ou seja, o tempo curto de permanência na comunidade durante os atendimentos, impacta negativamente na qualidade da atenção. Outro ponto destacado foi o fato da EMSI não estar completa na maior parte das visitas, sendo notada como grave a ausência constante de médico/a e odontólogo/a na equipe. 

Para o ano de 2021, a qualidade dos atendimentos foi avaliada como “regular” recebendo 2,8 pontos na média geral. Entretanto, há grande diferença na avaliação das comunidades do rio Tiquié, que consideraram “regular” – 3,1 pontos, a qualidade dos atendimentos, em relação às comunidades do rio Castanho, que consideraram como “ruim” – 2,3 pontos. Como é possível averiguar pelos relatos, os longos períodos em que as comunidades do Rio Castanho ficam sem visitas das EMSI pesou negativamente na avaliação. Os moradores de São Lourenço, São Joaquim, São Felipe e Morro do Beija-Flor, por exemplo, afirmaram que o vazio assistencial era grande ‘antes da pandemia’ e se tornou ainda pior ‘durante a pandemia’. Na comparação entre os anos de 2016, 2018 e 2021 (escala de 1 a 4, 7 indicadores), o item 2, “vazio assistencial/cobertura das equipes” apresentou melhora de 2016 para 2018, passando a pontuação de 2,0 (2016) para 2,8 (2018), mas a piora foi sentida regionalmente durante a pandemia, voltando esse indicador a receber nota 2,0 em 2021. 

Muitos entrevistados queixaram-se da “pressa” das equipes durante os atendimentos e raros mencionaram a existência de visitas domiciliares, tendo esse quesito recebido nota 2,9 (regular) a nível regional para o ano de 2021. Novamente, é notável a diferença de avaliação entre as comunidades do rio Tiquié, onde a nota foi “regular” (3,0) e as comunidades do rio Castanho, onde a nota foi “ruim” (2,7). Apenas a comunidade de São José, sede do polo-base, considerou “bom” (4,0) o tempo de permanência das EMSI. Segundo os interlocutores de São Lourenço, a “pressa” faz também com que as EMSI não escutem os pacientes, o que gera menor confiança nos diagnósticos e na adesão aos tratamentos. 

A constante ausência de médico (a) e odontólogo (a) na EMSI também foi levada em consideração para as avaliações e impactou negativamente na pontuação da qualidade dos atendimentos. Apenas a comunidade de São Joaquim mencionou que há visitas domiciliares quando o médico participa da EMSI. Na comunidade de Cunuri (rio Tiquié), os interlocutores disseram que o médico e o odontólogo nunca estão presentes, tendo sido a ausência desses profissionais destacada também por Maracajá e São Lourenço (rio Castanho). 

O resgate de pacientes graves e a qualidade do transporte proporcionado pelas EMSI foi também avaliada regionalmente como “regular” (2,5 pontos) para o ano de 2021. Chama a atenção o fato de que apenas as comunidades de Pirarara Poço, Acará poço e São José II (sede do polo-base) tenham considerado “bom” o resgate e que as notas das demais comunidades tenha sido “ruim” (2,0). Apesar de considerar “bom” o transporte, os interlocutores de Pirarara Poço disseram que, muitas vezes, chamam o resgate para os pacientes mas a equipe de resgate não vem. 

Outro item avaliado foi o papel do DSEI-ARN e das EMSI na promoção de acesso à água potável e saneamento básico, o que é fundamental para reverter os índices negativos de verminoses, desnutrição e malária, dentre outras doenças que atingem as comunidades de modo abrangente. Esse indicador foi o que recebeu a pior pontuação: 1,4 pontos para o ano de 2021, sendo classificado como péssimo na média geral da avaliação das comunidades. A gravidade da situação fez com que a totalidade das comunidades do rio Castanho atribuísse nota 1,0 pontos (péssimo), assim como as comunidades de Taracuá Igarapé, São João Batista e Cucura São João no Tiquié. De modo diferente, as comunidades de Pirarara poço, Acará poço classificaram como “ruim” (2,0 pontos) e São José II como “regular” (3,0 pontos). 

Para o ano de 2021, a cobertura vacinal foi avaliada por meio dos indicadores de “vacinas” e “vacina para a Covid-19”. As ações de imunização foram classificadas como “regulares”, tendo a vacinação específica para COVID-19 recebido 3,3 pontos e a vacinação para as demais doenças 3,4 pontos. Na avaliação das comunidades do rio Tiquié, a campanha de vacinação geral foi classificada como “boa” (3,8 pontos), assim como a vacinação para COVID-19 (3,5 pontos). Já as comunidades do rio Castanho classificaram como “regular” (3,0 pontos) todas as campanhas de vacinação. Novamente, a diferença entre as duas localidades parece estar associada ao vazio assistencial, mais crítico no rio Castanho, que faz com que mesmo nas estratégias de imunização haja discrepância.  

Mensagem: O vazio assistencial surge como um dos principais problemas para as comunidades, principalmente para as aldeias e sítios do rio Castanho, onde é mais difícil o acesso de EMSI durante os períodos de seca. Assim, para a superação do vazio assistencial é preciso entender a calha do rio Castanho como prioritária e elaborar estratégias para que os atendimentos contemplem as visitas domiciliares e condições para que as EMSI atendam com calma e garantindo o tempo necessário para a tradução, escuta, diagnósticos e diálogos interculturais. Torna-se urgente a implementação de estratégias e ações de promoção do acesso à água potável e saneamento básico nas comunidades. 

Interculturalidade na saúde indígena

A atuação dos benzedores (kumu e bi’id d’äh), pajés e conhecedoras de medicina indígena foi considerada por todas as comunidades como sendo a principal forma de prevenção e tratamento da COVID-19 por meio de remédios tradicionais e benzimentos. No rio Tiquié, a utilização da rede de radiofonia por benzedores e AIS para trocarem sopro-encantamentos (benzimentos), receitas de preparo de medicamentos e modos de tratamento da doença constituiu uma estratégia de saúde autônoma e eficaz diante da ausência das EMSI. No rio Castanho, a atuação coletiva de benzedores e pajés, que se deslocaram de comunidade em comunidade fazendo sopro-encantamentos para a proteção dos moradores, possibilitou também a pesquisa da etiologia da doença e a troca de modos de preparo de medicamentos tradicionais e de modos de realização de sopro-encantamentos. 

Além disso, essa dinâmica intercomunitária e intercultural entre diferentes etnias e especialistas em medicinas indígenas possibilitou o entendimento dos vetores de contágio da COVID-19 – quemuitas vezes foram profissionais de saúde do DSEI-ARN, agentes do exército ou funcionários da prefeitura. Isso permitiu estratégias de isolamento coletivo em áreas afastadas dos pontos de contágio, como foi o caso nas comunidades Hupd’äh de Barreira Alta e Taracuá Igarapé. Permitiu também a avaliação negativa do impacto da má distribuição de EPIs pelas EMSI para uso dos moradores das comunidades e mesmo da não observação dos protocolos de prevenção da COVID-19, seja pelas EMSI, seja por militares ou funcionários da prefeitura em serviço, o que suscitou o contágio. 

Apesar da visível eficácia dos tratamentos de medicinas indígenas no enfrentamento da COVID-19, a avaliação da interculturalidade em saúde promovida pelas EMSI representou um dos fatores que recebeu pior nota, sendo classificado como “ruim” (1,9 pontos) o item “Integração e apoio aos benzedores” e igualmente “ruim” (2,3 pontos) o item “integração e apoio às mulheres conhecedoras de medicina indígena”. As comunidades de São Felipe e Morro do Beija-Flor (rio Castanho), São João Batista e Cucura São João (rio Tiquié) consideraram “péssimo” o apoio aos benzedores. Comparativamente, enquanto a nota média para “integração e apoio aos benzedores” no Tiquié foi baixa : 2,1 (ruim), e para a “integração e apoio às mulheres conhecedoras de medicina indígena” foi 2,5 (ruim); o conjunto das comunidades do rio Castanho consideraram “péssima” a integração com benzedores (1,7 pontos) e “ruim” (2,0 pontos) a “integração e apoio às mulheres conhecedoras de medicina indígena”. 

Apesar de considerar “ruim” a interculturalidade em saúde, os interlocutores de São Lourenço mencionaram a importância da atitude de uma das enfermeiras da EMSI de valorizar a medicina indígena e recomendar que os pacientes com COVID-19 continuassem utilizando remédios tradicionais. Ainda que não reflitam um compromisso institucional do DSEI-ARN e das EMSI em definir estratégias e protocolos para um diálogo intercultural em saúde efetivo, atitudes como a desta enfermeira ajudam a explicar porquê a nota 1,7 pontos (ruim) foi dada em 2021 para o indicador “interculturalidade na saúde indígena”, enquanto que, nos anos 2016 e 2018, a nota tinha sido 1,0 (ruim), representando uma pequena melhora. 

Mensagem: Considerado um dos piores indicadores na avaliação regional, a “interculturalidade em saúde” parece constituir um dos maiores desafios para o DSEI-ARN. A recontratação de profissional de antropologia que se constitua como referência técnica para as equipes será fundamental nesse sentido, bem como a realização periódica de formações para que as EMSI entendam sua atuação a partir de uma perspectiva intercultural e de promoção da saúde em um contexto de intensa intermedicalidade. A solução apontada por muitos interlocutores está em “escutar” os benzedores e conhecedoras de medicinas indígenas, perguntar sobre os tratamentos prévios de medicina indígena, além de consultar os especialistas indígenas sobre possibilidades de apoio a suas atividades. O diálogo intercultural envolve também considerar o papel dos especialistas nas medicinas indígenas no monitoramento comunitário de surtos e epidemias, e seu conhecimento profundo sobre as práticas de prevenção adotadas no passado.

Apoio ao Agente Indígena de Saúde (AIS) 

A relação das EMSI com os AIS foi destacada como um problema para a maioria das comunidades da área de abrangência do polo-base de São José II. O indicador “apoio ao AIS” foi classificado como “ruim” (2,4 pontos) na avaliação geral, o que revela a dificuldade de integração desse profissional com as EMSI. A situação é pior na avaliação das comunidades do rio Castanho, que consideraram “ruim” a integração (2,0 pontos), se comparada à avaliação dos interlocutores do rio Tiquié, para quem o apoio ao AIS é “regular” (2,8). Comparando a pontuação do período de pandemia com os anos anteriores (2016 e 2018), percebe-se uma piora no apoio e integração do AIS à EMSI, já que a nota passa de 2,0 (2016 e 2018) para 1,9 (2021), apesar da maior parte dos relatos enfatizarem o protagonismo dos AIS no enfrentamento à COVID-19, buscando aprender sobre medicamentos tradicionais, realizar benzimentos, facilitar a comunicação de benzedores via radiofonia e até mesmo acompanhando os coletivos de benzedores e pajés durante suas visitas às comunidades no rio Castanho. 

Os relatos das comunidades de Taracuá Igarapé, Maracajá e São Joaquim deixam evidente o impacto negativo, por exemplo, de não haver repasse de medicamentos, equipamentos e insumos ao AIS, impedindo que o mesmo cumpra sua rotina de visitas domiciliares e acompanhamento de pacientes. Além disso, a não participação do AIS nos planejamentos da EMSI, como destacado por Taracuá Igarapé e Santa Rosa do Castanho, faz com que a comunidade não tenha acesso ao cronograma de visitas da EMSI e às dinâmicas dos atendimentos, dificultando a mediação do AIS com a comunidade e, mais especificamente, a mediação intercultural em saúde. 

O AIS muitas vezes utiliza combustível para facilitar resgates e mesmo para comunicar-se com a EMSI caso a radiofonia de sua comunidade não esteja em bom funcionamento. Como fica evidente no relato de Maracajá, a falta de repasse de combustível ao AIS, e mesmo de apoio a seu meio de transporte (canoa ou rabeta) significam, em muitos casos, uma maior dificuldade de comunicação e acesso ao resgate. A desintegração e a falta de apoio aos AIS impacta negativamente também na capacidade diagnóstica das EMSI pois, além dos AIS terem um contato cotidiano com as famílias (o que lhes permite reconhecer determinados agentes etiológicos e identificar certos processos de saúde-doença)testes para COVID-19, malária e outras doenças não são repassados para eles. 

Mensagem: Mostra-se fundamental o apoio, valorização e integração efetiva dos AIS às EMSI. A participação destes profissionais no planejamento e em ações de formação continuada poderá impactar positivamente na melhoria da confiança das comunidades nas EMSI, na melhoria da promoção da interculturalidade e intermedicalidade a médio e longo prazo. Além disso, a garantia das condições de trabalho do AIS precisam envolver o repasse de medicamentos básicos, equipamentos e insumos para que possam realizar as visitas domiciliares e acompanhar os tratamentos. A melhoria das condições de transporte dos AIS (rabeta, combustível e canoa) poderá impactar também no maior sucesso em resgates e na comunicação com as comunidades.

Apoio ao Conselheiro de Saúde Indígena (CSI)

O “apoio aos Conselheiros de Saúde Indígena (CSI)” e a “representação no CONDISI” foram os indicadores avaliados pelas comunidades que permitiram um mapeamento de suas percepções a respeito do exercício do controle social em saúde indígena, estruturado pelo Conselho Distrital de Saúde Indígena do Alto Rio Negro (CONDISI-ARN). Avaliaram-se as condições e apoios dados aos conselheiros locais e distritais para exercerem seus papéis de acompanhamento das ações de saúde e de levantamento dos problemas que impossibilitam a melhoria da qualidade na atenção prestada pelo DSEI-ARN. 

A avaliação geral atribuiu a pontuação de 2,1 pontos (ruim) para o apoio aos conselheiros e 2,3 pontos para a representação no CONDISI. Esse entendimento diz respeito a uma situação em que, de acordo com os entrevistados i) não são garantidas as condições mínimas de estrutura para que os conselheiros desempenhem seus papéis (como combustível e transporte); à ii) faltam informações sobre as ações, decisões, planejamento e estratégias do CONDISI-ARN; e iii) os conselheiros são chamados a participar de poucas reuniões do CONDISI e, durante a participação, sentem que não são ouvidos. No rio Castanho, a nota atribuída tanto para o apoio aos conselheiros quanto para a representação no CONDISI foi de 2,0 pontos (ruim), enquanto no rio Tiquié foi de 2,3 pontos para o apoio aos conselheiros e 2,5 pontos para a representação no CONDISI, ambos classificados como “ruins”. Esse resultado mostra a fragilidade do exercício do controle social, que foi avaliado como “ruim” também nos anos de 2016 (1,5 pontos) e 2018 (1,0 pontos). 

Os interlocutores da comunidade de São Lourenço afirmaram que a participação no CONDISI está esvaziada e, quando o conselheiro consegue participar, sua voz não é ouvida. Nas palavras do interlocutor de São Lourenço: “Agora toda vez, no conselho, eu reivindico, parece que não têm ouvido e nem fazem atenção”. Nas comunidades de Taracuá Igarapé, Santa Rosa do Samaúma e Sta. Rosa do Castanho, os interlocutores disseram ter pouca ou nenhuma participação no controle social, o que deve ser visto como grave, pelo fato dessas comunidades reunirem famílias das etnias Hupd’äh (T. Igarapé) e Yuhupdëh (Sta.Rosa). Considerados Povos Indígenas de Recente Contato (PIRC) pela SESAI e FUNAI, esses povos possuem grande vulnerabilidade epidemiológica, o que deveria reforçar a importância de sua participação no CONDISI-ARN. 

Dessa forma, o apoio aos conselheiros de saúde e a representação efetiva dos usuários (vozes sendo escutadas) no CONDISI envolve a garantia das condições para que os conselheiros distritais visitem as comunidades e possam realizar o monitoramento da qualidade das ações em saúde junto aos conselheiros locais e AIS. É preciso que os conselheiros sejam convocados para as reuniões de planejamento e avaliação das ações em saúde. Dadas essas garantias de apoio e representação, as comunidades poderão exercer melhor o controle social e apontar áreas de prioridade e formas de superação de problemas. 

Mensagem: O apoio aos conselheiros de saúde, locais e distritais, precisa ser priorizado pelo DSEI-ARN para que estes possam efetivamente monitorar as ações de saúde, contribuir com a promoção da interculturalidade, indicar áreas prioritárias e apontar problemas e formas de superação a partir do contato direto com os pacientes, AIS, e EMSI. Isso envolve também a maior constância de participação dos conselheiros distritais e locais em reuniões e fóruns de planejamento, monitoramento e avaliação das ações em saúde, de forma que sejam efetivamente integrados no processo e suas vozes sejam ouvidas. 

Saúde da mulher

A atenção específica à saúde da mulher constitui uma prioridade nos atendimentos prestados pela EMSI, assim como a saúde da criança e do idoso. Mesmo em meio ao enfrentamento da pandemia, a atenção à saúde da mulher foi avaliada como melhor do que nos anos anteriores. Para o ano de 2021, a avaliação regional classificou como “regular” (2,0) o indicador relativo à saúde da mulher, enquanto a classificação para 2016 e 2018 tinha sido “ruim” (1,5 pontos).  

Certamente, a intensificação do vazio assistencial impactou negativamente na possibilidade de percepção de maior melhora na atenção à saúde da mulher, mas muitas comunidades destacaram o fato de que sempre que há a visita da equipe, os profissionais atendem bem as mulheres, crianças e idosos, pois esses grupos constituem-se como prioritários. Dessa forma, no rio Castanho, onde há maior vazio assistencial, a classificação do indicador de atenção à saúde da mulher foi “ruim” (2,3 pontos), enquanto no rio Tiquié, com maior constância de visitas das EMSI, a classificação foi “regular”(3,4 pontos). 

Na comunidade do Cunuri, foi enfatizada a melhora em 2021 na atenção à saúde da mulher, da criança e do idoso, mas foi mencionado o fato de que aqueles que não fazem parte dos grupos prioritários sentem-se excluídos. As comunidades de Maracajá, Pirarara poço e Acará poço também destacaram como positiva a atenção à saúde da mulher, tendo esse indicador sido classificado como “bom” (4,0) na avaliação pelo Cartão de Pontuação Comunitária de Pirarara e Acará Poço. 

Mensagem: Ainda que a média de pontuação para a atenção específica à saúde da mulher tenha sido “regular” para o ano de 2021, as avaliações positivas de muitas comunidades e a melhora registrada na comparação com os anos de 2016 e 2018 apontam para uma estratégia bem sucedida das EMSI que vem impactando favoravelmente na confiança e percepção positiva das pacientes. A continuidade da estratégia de priorização da saúde da mulher, criança e idoso poderá, com a diminuição do vazio assistencial, representar melhora considerável no quadro epidemiológico desses grupos e também gerar maior confiança e adesão aos tratamentos. É preciso que a atenção prioritária seja intensificada na região do rio Castanho onde a classificação foi “ruim”(2,3 pontos). 

Integração com CASAI e hospitais (níveis secundário e terciário)

A integração da atenção básica prestada pelo DSEI-ARN com os níveis de média e alta complexidade do sistema de saúde foi avaliada pelas comunidades através dos indicadores “CASAI” e “Internação em hospitais”. As barreiras de comunicação e de interculturalidade durante as internações hospitalares impactam negativamente estes indicadores, na avaliação das comunidades de Pirarara Poço, Acará Poço, Taracuá Igarapé, São João Batista e Santa Rosa do Castanho. 

Ambos os itens foram classificados como “regulares”, tendo o indicador “CASAI” recebido 2,9 pontos e “internação hospitalar” 2,8 pontos para o ano de 2021. De 2016 para 2018, havia sido notada melhora na avaliação do indicador ‘integração com a média e alta complexidade’, passando de 1,8 pontos (regular em 2016) para 2,5 pontos (regular em 2018). Entretanto, durante a pandemia, a avaliação das comunidades voltou a apontar como “regular” (2,0) a integração com a CASAI e hospitais regionais. 

O longo tempo de espera na CASAI até que haja uma vaga para a internação hospitalar em São Gabriel ou Manaus, a comida ruim ou inadequada da CASAI e dos hospitais, as dificuldades de comunicação com os profissionais de saúde e a impossibilidade de realizar sopro-encantamentos (benzimentos) nesses espaços foram razões apresentadas pelos interlocutores para caracterizar como problemáticas as internações hospitalares e os períodos de atendimento na CASAI.  

Mensagem: A redução dos tempos de espera por vagas e tratamentos na rede hospitalar é fundamental para a melhoria da integração entre a atenção primária, secundária e terciária. A promoção da interculturalidade em saúde deve abranger a autorização e até mesmo o incentivo a tratamentos de medicina indígena realizados na CASAI e nos hospitais, viabilizando a continuidade e a complementaridade entre os tratamentos de benzedores e pajés e aqueles dos profissionais de saúde. O acolhimento dos pacientes na CASAI e hospitais precisa incluir, assim, respeito às tradições e costumes indígenas, assim como dietas que tenham como referência as culinárias indígenas e respeitem as restrições recomendadas por especialistas indígenas. A barreira da comunicação linguística precisa ser superada através de estratégias que envolvam a tradução linguística e o esclarecimento contínuo quanto a procedimentos, tratamentos, medicamentos, cirurgias, bem como protocolos de consentimento livre, prévio e esclarecido com relação aos tratamentos em curso.