Foto de Francisco Barbosa Miranda
Francisco Barbosa Miranda, liderança de Santa Rosa do Samaúma

A tosse da COVID-19 e os paricás dos primeiros avós

Enfrentamento da COVID-19 em Santa Rosa do Samaúma

Santa Rosa do Samaúma / 22 de julho de 2021

A comunidade de Santa Rosa fica no igarapé Samaúma, afluente do rio Tiquié. Ali, residem seis famílias do clã Onça, da etnia Yuhupdëh. No dia 22 de julho de 2021, a equipe de entrevistadores conversou com Francisco Barbosa Vila, liderança da comunidade. 

Francisco Vila contou que pegou COVID-19 na cidade de São Gabriel da Cachoeira. Apesar de a equipe não ter testado, ele sentiu vários dos sintomas característicos da virose, alguns que perduram até hoje. Para o tratamento da COVID-19, o sr. Francisco e o restante da comunidade utilizaram principalmente medicinas tradicionais. Cotidianamente, vêm fazendo benzimentos com breu “pra mandar a COVID de volta para onde ela veio” e tomando remédios preparados com plantas como caranapaúba, saracura e embaúba preta (a ponta da árvore de embaúba é usada para preparar um chá). 

Entrevista com Francisco Barbosa Miranda, da comunidade Santa Rosa do Samaúma

O líder comentou que é importante continuar benzendo as pessoas e a comunidade, pois, apesar dos moradores estarem vacinados com as duas doses, realizarem os benzimentos e tomarem os remédios tradicionais, “a COVID não acabou, mas aparece com outros sintomas”. 

O sr. Francisco também contou aos entrevistadores sobre como surgiu a COVID-19 e os benzimentos para curá-la. Em sua visão, o surgimento da COVID tem a ver com os paricás preparados pelos primeiros avós. Antigamente, os avós prepararam vários tipos de paricá (paricá de calanguinho do mato, paricá de ipadu, dentre outros), misturando com couro de jararaca seco. É o pó desses paricás que faz as pessoas adoecerem de COVID-19: “Esse pó, o pó desses paricás, como ele é fininho, ele sobe com o ventinho e enche na respiração da pessoa, do humano. E começa essa tosse, sabe. É através disso daí que se faz benzimento para tosse de COVID.” Esse pó de paricá dos primeiros avós desceu para o sul, mas depois retornou para a região, fazendo as pessoas da comunidade adoecerem por COVID-19.

Segundo o sr. Francisco, para tratar e prevenir a COVID-19 e outras doenças na comunidade, as pessoas sempre procuram o benzedor e tomam remédios preparados com plantas medicinais. Como não tem nenhum Agente Indígena de Saúde (AIS) na comunidade, procuram a Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena (EMSI) quando há necessidade. 

A EMSI visita a comunidade duas vezes por mês, dando prioridade à atenção à saúde das mulheres e das crianças. Segundo Francisco Vila, há pouca preocupação com a interculturalidade e complementaridade por parte da EMSI – a equipe não reconhece o conhecimento tradicional da comunidade e “nem procura saber se têm conhecedores tradicionais na aldeia”.

Além da falta de um AIS, a comunidade enfrenta dificuldades de comunicação com o Pólo Base São José II, pois a radiofonia funciona mal. Como não há um Conselheiro Local de Saúde Indígena da comunidade, fica mais difícil para os moradores reivindicarem melhorias na atenção à saúde. 

Em 7 comunidades da região de abrangência do Pólo-Base São José II, a equipe da pesquisa realizou um exercício de avaliação coletiva da qualidade dos serviços, usando uma ferramenta chamada ‘Cartão de Pontuação Comunitária’ a partir da atribuição de uma nota de 1 a 6, onde 1 corresponde a “péssimo” e 6 a “ótimo”. Este exercício permitiu mapear os aspectos onde as comunidades perceberam uma melhora na qualidade da atenção em decorrência da resposta à pandemia, e onde consideraram que a qualidade do serviço havia piorado ou ficado igual. Também permitiu identificar onde a pontuação dada por uma comunidade espelha o resultado geral da região, e onde tem diferenças importantes entre as comunidades na avaliação que fazem dos serviços.

A nota 2,6 (ruim) atribuída pelas comunidades em nível regional para  a qualidade na comunicação com a EMSI   faz perceber que o problema reportado por Santa Rosa não é isolado. Mesmo com uma cobertura boa, já que há duas visitas da equipe por mês, a comunidade reforça a necessidade de maior tempo de permanência. A nota regional para o tempo de permanência foi 2,9, o que mostra que as comunidades da área de abrangência do Pólo Base de São José II também consideram o tempo de permanência das EMSI “regular” e passível de melhora. É grave a total falta de diálogo da EMSI com benzedores e falta de interculturalidade na saúde, o que faz a avaliação da comunidade aproximar-se da regional, já que a nota (média) 1,9 atribuída aponta a falta de interculturalidade em saúde como um dos problemas mais graves. É também preocupante a ausência de conselheiro de saúde e a falta de representação da comunidade no CONDISI, tendo em vista que a nota regional de apoio ruim aos conselheiros foi 2,1 (ruim), sendo vista como ruim também a representação do CONDISI com notas 2,3 (ruim) no nível regional e 2,5 (ruim), considerando apenas as comunidades do rio Tiquié. 

Por isso, para a melhoria na atenção em saúde da comunidade, será fundamental que a EMSI dialogue mais com os conhecedores tradicionais, buscando aprender com eles. Além disso, é necessário que um AIS seja contratado e que haja incentivos para a atuação de um conselheiro local da comunidade. Ademais, é fundamental que os equipamentos de radiofonia sejam consertados ou trocados.