Eles não falam a nossa língua
Barreiras de comunicação e falta de EPIs dificultam enfrentamento da COVID pelos Hupd'äh em Taracuá Igarapé
Taracuá Igarapé / 16 de julho de 2021
A comunidade de Taracuá Igarapé é uma das maiores aldeias do povo Hupd’äh da região do médio Tiquié. Atualmente, quarenta e oito famílias das etnias Hupd’äh, Yuhupdëh, Dâw e Tukano compõem a população local de mais de duzentas pessoas. A equipe de pesquisadores conversou com o Agente Indígena de Saúde (AIS), Jovino Socot, com a professora Tereza Socot e com o animador, Samuel Monteiro, para entender como foi o enfrentamento da COVID-19 pela comunidade que, no momento da chegada da doença, procurava conter epidemias de malária e diarreia.
Foi por meio de conversas via radiofonia com conhecidos Baniwa do rio Aiari que ficaram sabendo da pandemia e tiveram a recomendação do preparo de remédios a partir de ervas medicinais como a saracura. No momento da chegada da doença, dizia-se que a COVID-19 não tinha cura. O principal cuidado foi a permanência na aldeia, evitando-se as viagens para a cidade, já que lá estava o principal foco de contágio.
Segundo o AIS, houve apenas um paciente que ficou com sequelas graves, mas mesmo assim não foi removido, tendo sido tratado na própria comunidade pelos benzedores. Só muito mais tarde é que a EMSI retomou o contato com a comunidade e informou sobre a vacinação. Foram dadas as duas doses para todas as pessoas da comunidade que tivessem mais de 15 anos.
Para Tereza Socot, o contágio foi grande por que “foi o pessoal que veio para São Gabriel que levou para a comunidade. Os moradores não sabiam, não entendiam o que era a doença. Os outros diziam que era doença dos brancos, só dos brancos”. Segundo Jovino Socot, a COVID-19 chegou na aldeia antes mesmo que eles ficassem sabendo da doença: “a doença já tinha enchido a aldeia e ninguém sabia da doença”.
Os três entrevistados enfatizaram que a comunicação com a EMSI é uma barreira para a melhoria da atenção em saúde. Apesar de alguns técnicos falarem a língua Tukano e traduzirem as informações repassadas pelos não indígenas, muitos dos pacientes não entendem o que é falado e, segundo o AIS, “escondem as dores”, porque “não conseguem falar que eles sentem dor”. Em situações de remoção para São Gabriel ou para Manaus, a barreira de comunicação torna-se mais séria ainda, já que muitas vezes não é possível ter a tradução para o Tukano. A falta de medicamentos é vista como um problema grave, já que impede que o AIS faça as visitas domiciliares e acompanhe o uso de medicamentos de acordo com as prescrições médicas.
A profa. Tereza Socot afirmou que, mesmo diante da COVID-19, as EMSI “não deixaram máscaras nem remédio porque, na verdade, o COVID não tinha remédio ainda”. Durante a pandemia, a EMSI priorizou o atendimento aos idosos e crianças, fazendo sempre a recomendação de distanciamento social, uso de máscara e limpeza das mãos. Mas a principal medida de prevenção, segundo a professora, foi o benzimento e defumação com breu.
Em Taracuá Igarapé, bem como em outras 7 comunidades da região de abrangência do Pólo-Base São José II, a equipe realizou um exercício de avaliação coletiva da qualidade dos serviços, usando uma ferramenta chamada ‘Cartão de Pontuação Comunitária’. Este exercício permitiu mapear os aspectos onde as comunidades perceberam uma melhora na qualidade da atenção em decorrência da resposta à pandemia, e onde consideraram que a qualidade do serviço havia piorado ou ficado igual. Também permitiu identificar onde a pontuação dada por uma comunidade espelha o resultado geral da região, e onde tem diferenças importantes entre as comunidades na avaliação que fazem dos serviços.
A nota dada por Taracuá Igarapé para qualidade da comunicação com a EMSI foi 2,0 (ruim), abaixo da nota regional, 2,6 (ruim). Para essa comunidade, a melhoria da comunicação envolve a informação sobre o cronograma de atendimentos da EMSI, e a tradução não apenas para o Tukano, mas também para a língua Hup. A comunicação coloca-se como uma barreira em outros níveis de atenção como na CASAI e nos hospitais de São Gabriel da Cachoeira e de Manaus. A nota dada regionalmente para o quesito “equipamentos e insumos” foi 2,7 (regular), enquanto Taracuá Igarapé atribuiu nota 2,0 (ruim) para esse item. A falta de medicamentos e equipamentos para o trabalho da EMSI e do AIS é, assim, vista como um problema grave que faz com que o AIS não consiga realizar sua rotina de visitas domiciliares e cuidados em saúde.
Igualmente grave é o problema do acesso a água potável e saneamento. A nota regional para esse indicador foi 1,4 (péssimo), o que revela que se trata de um problema sério para a maior parte das comunidades. Os moradores de Taracuá Igarapé atribuíram a pior nota: 1,0 (péssimo) para esse item, revelando a inexistência de ações do DSEI-ARN para a melhoria da estrutura comunitária de água e saneamento.
Apesar de ser fundamental a atuação dos bi’id d’äh (benzedores) e das conhecedoras de medicina indígena, o diálogo intercultural da EMSI e do DSEI-ARN são mínimos, o que é revelado pela nota 2,0 (ruim) dada pela comunidade para a integração e apoio a benzedores e conhecedoras de medicina indígena. Para ações de vacinação e, especificamente, a vacinação para COVID-19, os moradores de Taracuá Igarapé atribuíram a nota 3,0 (regular), seguindo avaliação regional mais positiva para esses ítens – 3,4 (regular) para vacinação em geral e 3,3 (regular) para a vacinação contra a COVID-19.
Desse modo, para a melhoria da atenção à saúde da comunidade, Taracuá Igarapé aponta a necessidade de que a EMSI comunique seu cronograma de chegada e atendimentos previamente ao AIS para que seja possível a organização comunitária. Além disso, é fundamental que o AIS tenha acesso à medicação e equipamentos para o cuidado e acompanhamento dos pacientes. Maiores investimentos na melhoria do acesso dessa comunidade a água potável e saneamento poderão significar melhorias significativas na saúde dos moradores. Soma-se a isso a necessidade de maior diálogo intercultural e tradução para a língua Hup em todos níveis de atenção à saúde.