Esse Bolsonaro só mandaria veneno
Enfrentamento da COVID-19 em Serra do Mucura
Serra do Mucura / 23 de julho de 2021
No dia 23 de Julho, a equipe visitou Serra do Mucura, aldeia onde moram sete famílias da etnia Tukano, e entrevistou Roberval Sobrano Pedrosa. Além de vice-capitão de Serra da Mucura, Roberval também é o conselheiro local de saúde indígena, Agente Indígena de Monitoramento Ambiental (AIMA) e presidente da ACIMET.
Roberval contou que, antes da COVID-19 chegar, foi convidado para tomar caarpi na cabeceira do rio Castanho. Quando tomaram caarpi, viram que uma doença forte estava chegando. Ao voltar para a aldeia, Roberval contou para as pessoas o que viu, mas não acreditaram nele. Pouco tempo depois, eles viram pela televisão que estava tendo muitas mortes na grande cidade. Foram chegando notícias pela televisão e via radiofonia de que as mortes estavam aumentando a cada dia e que a doença estava chegando cada vez mais perto da aldeia. Os moradores de Serra da Mucura foram ficando cada vez mais assustados. Quando souberam que o vírus tinha chegado na cidade de São Gabriel da Cachoeira, os moradores discutiram sobre a possibilidade de se isolar na floresta, mas decidiram ficar isolados na aldeia:
“[O COVID] já estava próximo de chegar na nossa aldeia. Aí decidimos e comentamos entre nós, falamos: ‘Até nós seremos pegos’. Mas como estava chegando mais próximo, mais próximo todo dia, aí nós sentimos assim assustados. Ficamos em comoção: ‘E agora?’. Aí ele, eu falei assim para eles: ‘Parentes, vamos ficar aqui na comunidade mesmo, se a gente fugir, não adianta. Aí é que a COVID vai mesmo [pegar a gente]’. E começamos a criar coragem de fixar na comunidade”.
Além de não sair da aldeia, passaram a fazer cotidianamente sopro-encantamentos para proteção com breu e cigarro. O entrevistado contou que quem trouxe a COVID para a aldeia foi seu irmão, que, ao saber do perigo da pandemia, foi à São Gabriel comprar mantimentos para se isolar no mato. Quando voltou, ele e outros moradores adoeceram com a COVID. Decidiram então ficar em suas casas, para não adoecer no meio do mato:
“Eu não vou fugir no mato, no mato eu sei que vou ficar doente, esses são vírus que perseguem os humanos. Onde você esconde, pega. Eu nem vou, ninguém vai fugir. Mas vamos ficar doentes dentro da nossa barraquinha”.
No dia das mães, em maio, muitos moradores visitaram uns aos outros e acabaram se infectando com o vírus. Felizmente, houve poucos casos graves na aldeia. Roberval relatou que a pessoa que ficou mais doente foi seu tio, que ia para a roça fizesse sol ou fizesse chuva. Seu tio quase morreu, mas não precisou ser resgatado, pois o pai de Roberval tratou-o com sopro-encantamentos e remédios à base de plantas medicinais.
Segundo Roberval, as principais medidas que contribuíram para prevenir e tratar a COVID-19 foram o isolamento social em relação a outras aldeias e à cidade, os sopro-encantamentos e os remédios à base de plantas medicinais. Alguns remédios eram conhecidos há muito tempo pelos mais velhos, desde a época da epidemia de sarampo. O compartilhamento de informação com outras aldeias e instituições também foi fundamental para o enfrentamento da pandemia. Foi via radiofonia que aprenderam como usar remédios preventivos à base de plantas como caranapaúba e saracura, por exemplo. Além disso, aprenderam em cartilhas da FOIRN/ISA sobre medidas de prevenção como lavar as mãos, não compartilhar pratos e talheres etc.
O conselheiro local relatou que a Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena esteve bastante ausente durante a pandemia; não fizeram palestras e apenas deixaram azitromicina de medicamento para o tratamento da COVID-19. Nenhum dos moradores de Serra do Mucura tomou azitromicina, pois temiam que lhes fizesse mal:
“A equipe do DSEI deixou azitromicina. Mas só que nós não fizemos tratamento com seu remédio. Ouvimos que o Presidente da República, Bolsonaro, ele mandaria só veneno dentro do frasco, mas no rótulo estava escrito que era o remédio para o COVID, mas não era. Por isso que nós não fizemos tratamento com esse remédio.”
Em 7 comunidades da região de abrangência do Pólo-Base São José II, a equipe da pesquisa realizou um exercício de avaliação coletiva da qualidade dos serviços, usando uma ferramenta chamada ‘Cartão de Pontuação Comunitária’ a partir da atribuição de uma nota de 1 a 6, onde 1 corresponde a “péssimo” e 6 a “ótimo”. Este exercício permitiu mapear os aspectos onde as comunidades perceberam uma melhora na qualidade da atenção em decorrência da resposta à pandemia, e onde consideraram que a qualidade do serviço havia piorado ou ficado igual. Também permitiu identificar onde a pontuação dada por uma comunidade espelha o resultado geral da região, e onde tem diferenças importantes entre as comunidades na avaliação que fazem dos serviços.
Ao destacar a ausência da EMSI durante a pandemia, vazio assistencial, Serra do Mucura mostra que esse problema afeta mais os moradores dessa comunidade que de outras da região, já que a nota regional foi 2,8 e a nota dada pelas comunidades do Tiquié foi 3,1, o que aponta para a classificação da qualidade do atendimento e frequência das visitas como “regular”. Entendendo que a comunicação via radiofonia com outras comunidades foi fundamental no enfrentamento da COVID-19, deve ser vista como grave percepção dos moradores de Serra do Mucura de dificuldade na comunicação com a EMSI. A nota atribuída regionalmente para a qualidade da comunicação entre EMSI e comunidades foi de 2,6 (ruim), o que mostra a necessidade de melhoria na comunicação seja a partir do uso da radiofonia, seja por meio de palestras e diálogos sobre os tratamentos baseados na medicina indígena. Assim, a diminuição do vazio assistencial e a melhoria da comunicação intercultural em saúde parecem ser as mudanças necessárias apontadas pela comunidade de Serra do Mucura para a melhoria da qualidade da atenção à saúde indígena.