foto de Paulo Marques Lima
Paulo Marques Lima na comunidade Trovão do Castanho

Fios de proteção e cura

Encantamentos-sopro para a proteção e tratamento da COVID-19 na comunidade Trovão

Trovão / 20 de julho de 2021

No dia 20 de Julho de 2021, a equipe de pesquisadores visitou a comunidade Trovão, no Rio Castanho, e entrevistou o Conselheiro Local de Saúde Paulo Marques Lima. 

O Conselheiro contou que soube da COVID no começo de 2020, durante uma assembleia da FOIRN na cidade de São Gabriel da Cachoeira. Foi nessa viagem à cidade que ele e sua família se infectaram com COVID-19 e, ao voltarem para sua comunidade em maio, levaram o vírus. Na comunidade, um senhor idoso faleceu por COVID-19.

Segundo o entrevistado, o atendimento da Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena (EMSI) durante o ano de 2020 não foi bom, pois a equipe tinha poucos remédios (apenas paracetamol e azitromicina). Além disso, os remédios eram ineficazes para tratar a COVID-19 – apenas aliviavam os sintomas por um tempo, mas depois os sintomas voltavam de novo. 

Entrevista ao Conselheiro Local de Saúde, Sr. Paulo Marques Lima, na comunidade de Trovão, no 20/07/2021

Paulo Lima contou que a maior parte dos casos de COVID-19 não foi grave na comunidade, pois os moradores fizeram cotidianamente a proteção da comunidade, benzendo com cigarro e breu, e tomaram remédios tradicionais para tratar a COVID. Um dos remédios que o entrevistado mencionou foi o fio do cipó de batata doce (Yãhpinda, em Tukano): “você amassa esse cipó, prepara com água em uma cuia e enche a barriga. Aí começa a vomitar tudinho para limpar as coisas ruins que estavam na barriga.” 

Paulo também contou que fizeram um benzimento elaborado com inspiração em um trecho do Livro de São Mateus, que falava sobre fios de cabelo. No benzimento, se usa um fio de cabelo: “com esse fio você pega, bota um copo de água e joga no copo e você vai tomando. A gente fez isso, mas o fio de cabelo sumiu.”

Para o Conselheiro, os benzimentos têm sido fundamentais para tratar e proteger os moradores da comunidade da COVID-19 e de outras doenças. Segundo ele, 

“a COVID é doença dos brancos. Sempre nós fizemos proteção com o breu. Não há mais COVID, só tem a doença comum na comunidade. Essa COVID só deu bastante em 2020. Mas agora só tem diarreia e gripe. Quando nós vamos para São Gabriel, sempre vamos preparar e sempre preparamos, para nossa proteção na viagem, para não pegar a COVID e outras doenças também”. 

Em 7 comunidades da região de abrangência do Pólo-Base São José II, a equipe da pesquisa realizou um exercício de avaliação coletiva da qualidade dos serviços, usando uma ferramenta chamada ‘Cartão de Pontuação Comunitária’ a partir da atribuição de uma nota de 1 a 6, onde 1 corresponde a “péssimo” e 6 a “ótimo”. Este exercício permitiu mapear os aspectos onde as comunidades perceberam uma melhora na qualidade da atenção em decorrência da resposta à pandemia, e onde consideraram que a qualidade do serviço havia piorado ou ficado igual. Também permitiu identificar onde a pontuação dada por uma comunidade espelha o resultado geral da região, e onde tem diferenças importantes entre as comunidades na avaliação que fazem dos serviços.

A avaliação negativa da comunidade de Trovão da qualidade dos atendimentos da EMSI segue a percepção das demais comunidades do rio Castanho que atribuíram a nota 2,3 para esse indicador, classificando como “ruim” o desempenho das EMSI e do DSEI-ARN durante a pandemia. A falta de equipamentos, medicamentos e demais insumos para os tratamentos de saúde, percebida como ruim por Trovão, também recebeu nota 2,3 na avaliação das comunidades do rio Castanho, sendo que a nota regional foi 2,7 (regular). O relato do conselheiro de saúde de Trovão mostra a importância que a medicina indígena teve no enfrentamento da COVID-19 através dos sopro-encantamentos e remédios tradicionais, mas deixa evidente a ausência de diálogo intercultural em saúde por parte da EMSI. A interculturalidade na saúde indígena foi avaliada negativamente na pontuação regional, com nota 23, (ruim), tendo sido atribuída uma nota ainda pior  pelas comunidades do rio Castanho : nota 1,7 (péssimo). 

Portanto, a comunidade de Trovão parece indicar que para a melhoria da qualidade da atenção à saúde é necessário que haja maior investimento da EMSI e do DSEI-ARN na promoção da interculturalidade em saúde indígena. Além disso, a carência de equipamentos e medicamentos das EMSI e do AIS comprometem seriamente as possibilidades de uma atenção à saúde efetiva para essa comunidade.