Foto de Orlando Massa Moura
Orlando Massa Moura, AIS da comunidade de Maracajá

Remédios e venenos dos brancos

AIS de Maracajá critica a falta de insumos e medicamentos no atendimento à saúde da aldeia e fala sobre a origem da COVID-19

Maracajá / 22 de julho de 2021


No dia 22 de Julho, a equipe de pesquisadores chegou à Maracajá, aldeia onde moram 28 pessoas da etnia Tukano. Ali, entrevistaram Orlando Massa Moura, que trabalha como Agente Indígena de Saúde (AIS) na aldeia há nove anos. 

A Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena (EMSI) visita a aldeia uma vez por mês. Como a equipe comunica com antecedência o cronograma ou a data de chegada, os moradores se organizam para a visita. Quando alguém adoece, as famílias procuram primeiro o kumu, depois procuram o AIS ou a EMSI, decidindo em conjunto com os demais moradores sobre os tratamentos: “O trabalho é conjunto lá na comunidade. Se une, se decide e dá o remédio caseiro ou ocidental também. A comunidade usa também a medicina tradicional, ao mesmo tempo ocidental”. Segundo Orlando, a EMSI entende e valoriza a medicina tradicional. O AIS considera que a valorização da medicina tradicional é fundamental pois, além de ser eficaz, é uma forma de não ficarem dependentes dos remédios e equipamentos dos brancos, que sempre estão em falta. 

Entrevista realizada com Orlando Massa Moura na comunidade de Maracajá em 22/07/2021.

Os moradores enfrentam uma série de obstáculos para acessar a medicina ocidental. Orlando contou que, apesar de ter participado de uma série de cursos de capacitação e qualificação, faltam materiais e insumos básicos para atender os moradores e colocar em prática aquilo que aprendeu nos cursos. O AIS não tem, por exemplo, equipamentos como um esfigmomanômetro (medidor de pressão arterial), um glicosímetro (medidor de glicose), e nem mesmo um termômetro. Esparadrapos e testes rápidos para malária também sempre estão em falta. Uma vez, quando teve um surto de malária na aldeia, só entregaram os testes rápidos quando os moradores, articulados com o presidente do CONDISI, fizeram uma denúncia da situação para a SESAI.

A EMSI, quando visita Maracajá, faz bastante palestras, mas frequentemente vem sem equipamentos e medicamentos básicos. Eles deixam apenas um pouco de dipirona com o AIS. O DSEI também não não fornece gasolina o suficiente para que o AIS faça visitas a aldeias próximas ou faça remoções caso necessário. Muitas vezes, o AIS usa sua própria gasolina para realizar o atendimento em aldeias próximas, que fazem parte de sua setorização. Orlando relatou:

“Ultimamente, no período do COVID, eu tinha pedido o apoio de gasolina (…) porque tudo estava parado. Nem dava para viajar, nem dava para descer para São Gabriel. Por isso que eu tinha pedido esse apoio. Mas o enfermeiro [da EMSI] ficou brabo, ficou chateado. Aí eu falei assim: ‘Eu faço parte da equipe de saúde também. Agora vocês não querem me deixar um pouco de gasolina?’ Aí, o enfermeiro recuou, ficou sem jeito, já. Ele entende que [a área] é grande. (…) Para fazer a visita na minha setorização, eu mesmo, eu mesmo levo a minha gasolina para fazer visita, para abastecer na minha rabetinha. Ultimamente, o enfermeiro chegou e deixou dez litros para eu fazer a setorização, para eu fazer visita.”

Segundo Orlando, a EMSI estava infectada com COVID-19 quando visitou Maracajá para dar orientações a respeito da pandemia (como, por exemplo, realizar isolamento social e tomar suco de limão). Todos os moradores pegaram COVID, mas quase não houve casos graves. Para o tratamento dos doentes, usaram principalmente remédios tradicionais e encantamentos-sopro. O entrevistado contou que os moradores de Maracajá recusaram-se a tomar a vacina contra a COVID-19: 

“Nós, indígenas, da comunidade, temos terra, temos cultura, temos matos e culturas e pensamos não vacinar. Sim, ia ter vacina sim, mas não precisamos de vacina. Se matar, mataria tudo. E, sim, nós sobrevivemos, e vamos usar nossa cultura, nossa sabedoria, tomando remédio caseiro.”

Na visão de Orlando, foram os brancos que criaram a COVID-19: “esse COVID foi a criação dos brancos. Os brancos criaram. Por isso, eles deram nome já, deram o nome de COVID. Esse COVID é a economia deles.” O entrevistado explicou que, para ele, a COVID é como um veneno dos brancos: “Quem tem veneno, se envenena por si mesmo. Assim que está tendo esse COVID para os brancos, isto acontece com os brancos.”

Segundo ele, os moradores de Maracajá já previam que ia chegar uma doença grave, antes mesmo que houvesse qualquer notícia da COVID-19. No entanto, decidiram não fugir para o mato para se proteger, pois temiam já estarem contaminados, como aconteceu com seus avós em epidemias de sarampo e gripe: 

“essa doença são doenças do mundo ou do universo mesmo. Os vírus vêm do universo, são invisíveis. Aqui na comunidade somos católicos, rezamos, já vimos, já soubemos que ia chegar essa doença peste. Em 2020, no mês de abril, março para o abril, meus irmãos já tinham, meus irmãos que trouxeram de São Gabriel da Cachoeira e meu pai estava com COVID com ele. Assim, o meu pai falou: ‘isso vai acabar com a gente’. Ouvindo isso daí, a comunidade decidiu não fugir no mato. Decidiram permanecer na comunidade de Maracajá. Porque tempos atrás, nossos avós morreram com sarampo e com gripe espanhola. Agora ninguém vai mais. Porque eles fugiam sim, mas na verdade eles saíam com doença no mato já”.

Em 7 comunidades da região de abrangência do Pólo-Base São José II, a equipe da pesquisa realizou um exercício de avaliação coletiva da qualidade dos serviços, usando uma ferramenta chamada ‘Cartão de Pontuação Comunitária’ a partir da atribuição de uma nota de 1 a 6, onde 1 corresponde a “péssimo” e 6 a “ótimo”. Este exercício permitiu mapear os aspectos onde as comunidades perceberam uma melhora na qualidade da atenção em decorrência da resposta à pandemia, e onde consideraram que a qualidade do serviço havia piorado ou ficado igual. Também permitiu identificar onde a pontuação dada por uma comunidade espelha o resultado geral da região, e onde tem diferenças importantes entre as comunidades na avaliação que fazem dos serviços.

A comunidade de Maracajá afirma assim a força e eficácia dos tratamentos de medicina indígena com benzedores e conhecedoras das práticas de cura, havendo aceitação e algum interesse por parte da equipe, mas a pouca inteculturalidade na atenção à saúde prestada pelo DSEI-ARN. Regionalmente, média de pontos atribuída pelas comunidades para a  integração da equipe com benzedores  foi de 1,9 pontos (ruim), o que aponta para a necessidade de maior diálogo intercultural em saúde.  A adoção da prática de denunciar irregularidades na atenção à saúde ao CONDISI e à FOIRN apontam para a avaliação da representação no controle social em saúde como sendo regular, de modo diferente da percepção regional, já que a pontuação média foi de 2,3 (ruim) para a representação e atuação do CONDISI. A pontuação regional média para a qualidade dos atendimentos nas comunidades foi 2,8 (regular), tendo sido sempre destacado o problema do vazio assistencial. Maracajá ressalta o problema da ausência de médicos e odontólogos na equipe por intervalos longos. Apesar do indicador “tempo de permanência das EMSI na comunidade” ter recebido a pontuação média de 2,9 (regular), a necessidade de maior tempo de permanência das EMSI na comunidade foi destacada por Maracajá. A atenção específica à saúde da mulher é vista como regular pelas comunidades da região, tendo a média de pontuação atingido 2,9 pontos, tendo Maracajá destacado a boa qualidade da atenção específica à mulher e à criança. 

A maior integração do AIS na EMSI, os atendimentos com a EMSI completa, o maior tempo de permanência na comunidade para os atendimentos e um melhor diálogo intercultural em saúde são todas propostas importantes apontadas pela comunidade de Maracajá  para a superação dos problemas atuais na saúde indígena.