Tapurús, remédios e benzimentos
Enfrentamento da COVID em Pirarara Poço
Pirarara Poço e Acará Poço / 15 de julho de 2021
No dia 15 de julho de 2021, a equipe de pesquisadores chegou à comunidade de Pirarara Poço, no rio Tiquié, e realizou entrevistas com a Agente Indígena de Saúde (AIS), sra. Oscarina Caldas Azevedo, com o conselheiro local de saúde, sr. Vilmar Rezende Azevedo, e com o líder comunitário, sr. Celestino Rezende Azevedo. Foram os benzimentos, remédios tradicionais e medicamentos deixados pela Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena (EMSI) que garantiram a prevenção e também os tratamentos de COVID-19.
Durante a pandemia, a AIS participou de um encontro de conhecedores promovido pela FOIRN/ISA na comunidade de Serra do Mucura para levantamento do entendimento regional das causas e formas de tratamento da COVID-19. Segundo Oscarina Caldas, “na visão dos conhecedores, os pajés e kumu, quem causa a doença são os Tapurus, que são invisíveis. Na verdade, com os nomes dos brancos seria dado o nome de vírus. Mas eles vêm pelas nuvens, descem e pousam no meio dos alimentos, no meio da roça. Todas as coisas são penetradas por esse ‘vírus’ ”.
Quando adoeceu pela COVID-19, a AIS combinou o tratamento recomendado pela EMSI, tomando paracetamol, com o tratamento da medicina indígena, tomando remédios caseiros à base de jambú, gengibre, limão e maracatanha. Além disso, foi benzida constantemente pelo kumu da comunidade. Para a prevenção, o benzedor realizou benzimento com breu para defumar o entorno da aldeia.
Pirarara tem apenas um benzedor, ancião de Pirarará Poço, que contribui benzendo e protegendo as famílias. Foi ele quem conduziu a maior parte dos tratamentos de medicina indígena durante a pandemia.
O conselheiro local de saúde, Vilmar Azevedo, e sua família também pegaram COVID-19 na cidade. Viajaram para lá no período de férias escolares, mesmo sabendo dos perigos da doença. Na cidade, não puderam recorrer a benzedores para o tratamento, então combinaram o uso de azitromicina e paracetamol, para baixar a febre, com os remédios tradicionais à base de saracura e caranapaúba. Ele ficou sabendo da doença através do noticiário da televisão na cidade.
Na comunidade, a notícia da pandemia chegou via radiofonia. Chegaram até a colocar uma placa no porto da aldeia para orientar os viajantes que lá pernoitavam com relação às medidas de prevenção.
O líder comunitário, sr. Celestino Azevedo, disse perceber melhorias na comunicação da comunidade com a EMSI, agora que foi instalada a internet em Pirarara. Para ele, a EMSI realiza bem os atendimentos, priorizando a saúde da mulher e das crianças. Os resgates são realizados sempre que solicitados pela comunidade. Entretanto, o sr. Celestino chamou a atenção para o problema do vazio assistencial nos períodos de troca das equipes. A comunidade chega a ficar até uma semana sem assistência. Durante a pandemia, num desses períodos de ausência de equipes, ele adoeceu e havia a necessidade de resgate, mas não conseguiram se comunicar com a EMSI. Seu filho emprestou combustível e fez o resgate. Conseguiu depois ser ressarcido pela EMSI com o combustível gasto no trajeto.
Segundo o sr. Celestino, há uma preocupação por parte da EMSI com a interculturalidade, mas ainda há pouco diálogo e complementariedade nos cuidados com a saúde da comunidade. O líder comunitário disse que a EMSI costuma falar sobre a importância de usar as medicinas indígenas apenas de forma genérica, sem articular as práticas de cuidado : “a equipe fala sobre medicina tradicional […] mas não aprofunda muito”.
Em Pirarara e Acará Poço, bem como em outras 7 comunidades da região de abrangência do Pólo-Base São José II, a equipe realizou um exercício de avaliação coletiva da qualidade dos serviços, usando uma ferramenta chamada ‘Cartão de Pontuação Comunitária’. Este exercício permitiu mapear os aspectos onde as comunidades perceberam uma melhora na qualidade da atenção em decorrência da resposta à pandemia, e onde consideraram que a qualidade do serviço havia piorado ou ficado igual. Também permitiu identificar onde a pontuação dada por uma comunidade espelha o resultado geral da região, e onde tem diferenças importantes entre as comunidades na avaliação que fazem dos serviços. Em 2021, para a avaliação da qualidade da atenção à saúde, as comunidades atribuíram notas de 1 a 6 pontos para diferentes indicadores, sendo 1 a pior nota e 6 a melhor nota).
De acordo com a avaliação regional feita através da metodologia do Cartão de Pontuação, a avaliação regional da vacinação para a Covid foi considerada “regular”, tendo sido atribuída a nota 3,3 (média). Pirarara e Acará acompanha essa percepção regional. A nota atribuída por essas comunidades foi 4,0 (bom), tendo os entrevistados ressaltado a celeridade no acesso às duas doses da vacina. O tempo de permanência da EMSI na comunidade recebeu também nota 4, 0 (bom), estando acima na média de pontos da avaliação regional que foi 2,9 (regular). Apesar dos moradores de Pirarara e Acará poço terem o entendimento de que as ações de contracepção não são baseadas em consentimento dialogado e ratificado por termos de responsabilidade, a nota atribuída a esse indicador foi 4,0 (bom), num contexto em que a nota média regional para o indicador “Consentimento para os tratamentos” foi 3,3 pontos (regular). No que diz respeito ao resgate para pacientes graves, a constatação de que as solicitações não são atendidas é grave e faz a comunidade acompanhar a avaliação regional que classificou os transportes (resgates inclusos) como ruim (nota 2,5). Apesar da boa avaliação do tempo de permanência nas comunidades, os períodos de ausência de equipes no pólo-base intensificam o problema do não atendimento aos resgates.
Por isso, para a melhoria na atenção em saúde da comunidade, será fundamental a diminuição desse período de ausência de EMSI no pólo-base. Além disso, foi destacada a importância de um maior diálogo da EMSI com os tratamentos de medicina indígena. Também foi feita a proposta de construir uma casa dos benzedores em São Gabriel da Cachoeira.