Foto de Protásio Ribeiro Lima
Protásio Ribeiro Lima, Conselheiro Local de Saúde de São Joaquim do Castanho

Um sopro de proteção vindo da cabeceira

Práticas de cuidado para o enfrentamento da COVID-19 em São Joaquim do Castanho

São Joaquim / 19 de julho de 2021


Em São Joaquim, no Rio Castanho, moram 22 famílias das etnias Yuhupdëh, Tuyuka e Yepamasã. Ali, no dia 19 de julho de 2021, a equipe de pesquisadores entrevistou o Agente Indígena de Saúde (AIS), Horácio Barbosa da Silva, yepamasã, e o Conselheiro Local de Saúde, Protásio Ribeiro de Lima, tuyuka. 

Os entrevistados contaram que ficaram sabendo da COVID-19 por meio do noticiário da televisão. Ficaram preocupados, pois viram que muita gente estava morrendo desta doença, principalmente os brancos. Sabendo disso, um pajé que mora na cabeceira do Castanho fez um encantamento-sopro para proteger as aldeias do rio Castanho da COVID. Além disso, os quatro conhecedores que moram na comunidade fizeram encantamentos-sopro regularmente para proteger os moradores.

Entrevistsa ao Agente Indígena de Saúde (AIS), Horácio Barbosa da Silva, e ao Conselhero Local de Saude (CLS), Protásio Ribeiro de Lima, na comunidade de São Joaquim, no Rio Castanho, no 19/07/2021

Segundo os entrevistados, a COVID-19 chegou em São Joaquim quando alguns moradores foram à Pari Cachoeira durante uma ação da prefeitura. Depois disso, o vírus se espalhou pela comunidade e chegou até a cabeceira do Castanho. Horácio Silva relatou que alguns casos foram bastante graves, como o de sua tia, que quase morreu. Ainda há casos de COVID na aldeia, mas os sintomas não são mais tão fortes e a população já está quase toda vacinada. 

Foto de Horácio Barbosa da Silva
Horácio Barbosa da Silva, Agente Indígena de Saúde de São Joaquim do Castanho

Os moradores de São Joaquim usaram principalmente remédios tradicionais para se proteger e tratar da COVID-19. O remédio mais usado para não pegar a COVID foi o taxe, “que é uma casa de formiga que fica numa árvore. É um formigueirozinho, são os pequenos”. Protásio Lima contou que também usaram remédios tradicionais como saracura, mel e limão e, em menor quantidade, remédios dos brancos (principalmente azitromicina). Apesar da importância dos remédios tradicionais para o enfrentamento da COVID-19 na aldeia, a EMSI não tinha conhecimento a respeito. Segundo Horácio, a equipe não buscava saber, não perguntava aos conhecedores sobre suas práticas de cuidado. 

Horácio, que trabalhou como AIS voluntário por quatro anos antes de ser contratado, também colocou que a Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena (EMSI) deixa poucos remédios com ele, o que dificulta seu trabalho. Além disso, contou que, durante a pandemia, houve um vazio assistencial. As EMSI do Pólo Base São José II ficaram sem visitar o Castanho por um longo período. Quando visitaram, “a COVID já tinha enchido na comunidade, já tinha tomado conta na comunidade”. Ao mesmo tempo, o entrevistado apontou para pontos positivos na atuação da EMSI: a equipe pernoita na aldeia, de forma que pode fazer o atendimento com mais calma. Quando o médico está presente, por exemplo, faz visitas domiciliares.

Em São Joaquim, bem como em outras 7 comunidades da região de abrangência do Pólo-Base São José II, a equipe realizou um exercício de avaliação coletiva da qualidade dos serviços, usando uma ferramenta chamada ‘Cartão de Pontuação Comunitária’. Este exercício permitiu mapear os aspectos onde as comunidades perceberam uma melhora na qualidade da atenção em decorrência da resposta à pandemia, e onde consideraram que a qualidade do serviço havia piorado ou ficado igual. Também permitiu identificar onde a pontuação dada por uma comunidade espelha o resultado geral da região, e onde tem diferenças importantes entre as comunidades na avaliação que fazem dos serviços.

Cartão de Pontuação Comunitário de São Joaquim do rio Castanho comparando a qualidade da atenção à saúde nos períodos anterior e posterior à pandemia de COVID-19.

Em 2021, a pontuação atribuída pelas comunidades da região para a questão do vazio assistencial pelo Cartão de Pontuação foi de 2,0 (“ruim”) pontos num total de 6,0 pontos (sendo 1 a pior nota e 6 a melhor nota), o que revela a grande insatisfação regional. Em São Joaquim, o vazio assistencial surgiu também como um problema grave, tendo os interlocutores atribuído a nota 2,0 (“ruim”) para o intervalo longo entre as visitas das EMSI em 2021. Outra questão séria diz respeito à falta de medicamentos e equipamentos, o que compromete seriamente o trabalho do AIS. A comunidade de São Joaquim atribuiu a nota 3 (regular), seguindo a avaliação regional em que as comunidades atribuíram a nota de 2,7, qualificando como “regular” o provimento de medicamentos, equipamentos e demais insumos. Como a EMSI pernoita na comunidade durante as visitas, os interlocutores de São Joaquim avaliaram como “regular” o quesito “tempo de permanência na comunidade da EMSI, tendo atribuído a nota 3,0. A nota regional para a interculturalidade em saúde foi de 1,7, sendo que as comunidades da região classificaram como péssimo o diálogo intercultural das equipes com os kumu (sopradores-benzedores). A inexistência de diálogo da EMSI com os especialistas tradicionais sobre os tratamentos de medicina indígena levou São Joaquim a apontar a questão da interculturalidade em saúde como um problema sério. A nota dada pela comunidade foi 2,0 (ruim), o que demonstra o fechamento da EMSI em assumir a interculturalidade e a intermedicalidade como algo importante tanto antes quanto durante a pandemia. Apenas o critério “Água e saneamento” foi avaliado como “péssimo” (nota 1,0) pela comunidade de São Joaquim, o que reflete a avaliação negativa regional que atribuiu a nota 1,4 (“péssimo”). 

Durante a pandemia, a organização comunitária de São Joaquim, o trabalho do AIS, assim como o trabalho dos kumu (sopradores/benzedores) mostraram-se fundamentais para o enfrentamento da Covid-19. A intercuturalidade em saúde, o acesso a insumos e o vazio assistencial seguem sendo problemas sérios que comprometem a melhoria da qualidade da atenção em saúde.