Indicadores prioritários para a melhoria da saúde indígena no Alto Rio Negro

Pesquisa realizada por lideranças indígenas por meio da metodologia do ‘Cartão de Pontuação Comunitária’ aponta sete indicadores para o monitoramento da qualidade da saúde indígena no Alto Rio Negro

O projeto ‘Comunicação Intercultural para uma resposta efetiva à COVID-19 nos Territórios Indígenas Amazônicos’ (SSL-FOIRN-IDS) desenvolveu-se a partir do engajamento de uma equipe multidisciplinar, indígena e não indígena, em uma pesquisa-ação realizada em 14 comunidades da área de abrangência do polo-base de São José II (DSEI-ARN) e da construção da Plataforma de Monitoramento Comunitário da Qualidade da Saúde Indígena (PMCQSI).

Em 2020, a iniciativa partiu de participantes do Fórum de Saúde Indígena do Rio Negro (FSIRN) que, em meio ao avanço crescente de casos e óbitos pela COVID-19 na região, à ausência de dados epidemiológicos confiáveis e às dificuldades crescentes de atuação das equipes de saúde, decidiram realizar um processo de monitoramento de base comunitária que envolvesse também a avaliação da qualidade da atenção à saúde prestada pelo DSEI-ARN.

Para isso, uma equipe de pesquisadores indígenas conduziu um exercício de avaliação coletiva da qualidade dos serviços, realizando entrevistas semiabertas e usando uma ferramenta chamada ‘Cartão de Pontuação Comunitária’. No Cartão de Pontuação Comunitária, as comunidades avaliaram a qualidade da saúde indígena através de 21 indicadores nos períodos “anterior à pandemia de Covid-19” e “durante a pandemia de Covid-19”.

Este exercício permitiu mapear os aspectos onde as comunidades perceberam uma melhora na qualidade da atenção em decorrência da resposta à pandemia, e onde consideraram que a qualidade do serviço havia piorado ou ficado igual. Também permitiu identificar onde a pontuação dada por uma comunidade espelha o resultado geral da região, e onde tem diferenças importantes entre as comunidades na avaliação que fazem dos serviços.

Além disso, foi feita a comparação dos dados obtidos em 2021 com dados da pesquisa Vozes desiguais (SSL/FOIRN/IDS), realizada na área de abrangência do polo-base de São José II entre 2016 e 2018 e que contou também com a avaliação comparativa da qualidade da atenção em saúde por meio do Cartão de Pontuação Comunitário.

A comparação e a identificação de melhora e/ou piora em determinados indicadores da qualidade da atenção à saúde entre os anos de 2016, 2018 e 2021 estabeleceu-se através da escala de 1 a 4, onde 1 equivaleu a ‘ruim’ e 4 a ‘muito bom’, e 7 indicadores prioritários, sendo eles: 1. Comunicação intercultural; 2. Vazio assistencial/ cobertura das equipes; 3. Interculturalidade na saúde indígena (medicinas tradicionais e biomedicina); 4. Apoio ao AIS; 5. Integração a serviços de média e alta complexidade (resgate, CASAI, hospital); 6. Apoio aos conselheiros de saúde; 7. Saúde da mulher. 

A análise de tais indicadores pode ajudar a lideranças indígenas, gestores e profissionais de saúde identificarem áreas prioritárias para a promoção de melhorias, bem como áreas em que está havendo um bom desempenho das ações e estratégias das EMSI.

1 - Saúde da mulher 

A atenção específica à saúde da mulher constitui uma prioridade nos atendimentos prestados pela EMSI, assim como a saúde da criança e dos idosos. Mesmo em meio ao enfrentamento da pandemia, a atenção à saúde da mulher foi avaliada como melhor do que nos anos anteriores. Para o ano de 2021, a avaliação regional deu nota 2,0 ao indicador relativo à saúde da mulher, enquanto a classificação para 2016 e 2018 tinha sido de 1,5 pontos(ruim).  

Certamente, a intensificação do vazio assistencial impactou negativamente na possibilidade de percepção de melhora na atenção à saúde da mulher, mas muitas comunidades destacaram o fato de que sempre que há a visita da equipe, os profissionais atendem bem as mulheres, crianças e idosos, pois esses grupos constituem-se como prioritários. Dessa forma, no rio Castanho, onde há maior vazio assistencial, a classificação do indicador de atenção à saúde da mulher foi “ruim” (2,3 pontos), enquanto no rio Tiquié, com maior constância de visitas das EMSI, a classificação foi “regular”(3,4 pontos). 

O professor tukano João Carlos Monteiro Pedrosa da comunidade de Boca da Estrada sublinhou a importância de que haja um espaço adequado para a realização de exames ginecológicos na aldeia: “A maior parte das mulheres não realiza os exames médicos (como PCCU e exames de pré-natal), pois sentem-se expostas e envergonhadas”. 

2 - Integração com CASAI e hospitais (níveis secundário e terciário)

A integração da atenção básica prestada pelo DSEI-ARN com os níveis de média e alta complexidade do sistema de saúde foi avaliado pelas comunidades através dos indicadores “Casas de Saúde Indígena - CASAI” e “Internação em hospitais”. As barreiras de comunicação e de interculturalidade durante as internações hospitalares impactaram negativamente na avaliação das comunidades de Pirarara Poço, Acará Poço, Taracuá Igarapé, São João Batista e Santa Rosa do Castanho. 

Ambos os itens foram classificados como “regulares”, tendo a CASAI recebido 2,9 pontos e a internação hospitalar 2,8 pontos para o ano de 2021. De 2016 para 2018, havia sido notada melhora na avaliação do indicador ‘integração com a média e alta complexidade’, entretanto, durante a pandemia, a avaliação das comunidades voltou a apontar como “regular”.

O longo tempo de espera na CASAI até que haja a vaga para a internação hospitalar em São Gabriel ou Manaus, a comida ruim da CASAI e dos hospitais, as dificuldades de comunicação com os profissionais de saúde e a impossibilidade de realizar sopro-encantamentos (benzimentos) nesses espaços foram todas razões apresentadas pelos interlocutores para caracterizar como problemáticas as internações hospitalares e períodos de atendimento na CASAI.  

O acolhimento dos pacientes na CASAI e hospitais precisa incluir respeito a suas tradições e costumes, assim como dietas que tenham como referência a culinária indígena. A barreira da comunicação linguística precisa ser superada através de estratégias que envolvam a tradução linguística e o esclarecimento contínuo quanto a procedimentos, tratamentos, medicamentos, cirurgias, bem como protocolos de consentimento livre, prévio e esclarecido com relação aos tratamentos em curso. 

3 - Vazio assistencial e qualidade dos atendimentos nas comunidades

Vazio assistencial corresponde aos períodos de ausência de EMSI no polo-base e aos intervalos entre suas visitas às comunidades. O curto tempo de permanência na comunidade e falta de uma equipe completa da EMSI foram notadas como um problema grave, principalmente pela ausência constante de médico/a e odontólogo/a na equipe. 

O Conselheiro Local de Saúde Indígena da comunidade de Santa Rosa, Inácio Macedo Barbosa, pontua: “É preciso que a EMSI realize mais visitas à comunidade. Atualmente, a equipe tem visitado a comunidade apenas uma vez por mês”.

A rapidez nos atendimentos é considerada pelas comunidades como um ponto negativo que faz com que as EMSI não escutem os pacientes, o que gera menor confiança nos diagnósticos e na adesão aos tratamentos.

Nota-se que o vazio assistencial surge como um dos principais problemas para as comunidades, principalmente para as aldeias daquela região (Rio Castanho), onde é mais difícil o acesso de EMSI durante os períodos de seca. Por esse motivo, alguns itens apresentam notas consideravelmente distintas. “Qualidade dos atendimentos”, por exemplo, recebeu 2,8 pontos na média geral; “cobertura vacinal” recebeu 3,8 e visitas domiciliares 3,0 pontos, contra respectivamente 2,3 pontos, 3,0 pontos  e 2,7 pontos na área de abrangência do rio Castanho.

4 - Apoio ao Agente Indígena de Saúde (AIS) 

“O AIS não tem, por exemplo, equipamentos como um esfigmomanômetro (medidor de pressão arterial), um glicosímetro (medidor de glicose), e nem mesmo um termômetro. Esparadrapos e testes rápidos para malária também sempre estão em falta. Uma vez, quando teve um surto de malária na aldeia, só entregaram os testes rápidos quando os moradores, articulados com o presidente do CONDISI, fizeram uma denúncia da situação para a SESAI”, diz Orlando Massa Moura, Agente Indígena de Saúde (AIS) na aldeia há nove anos na aldeia Maracajá.

O relato de Moura é somente um exemplo do porquê da pontuação “ruim” (2,4 pontos) entre a maioria dos entrevistados e que revela a dificuldade de integração desse profissional com as EMSI.

Problemas como falta de repasse de combustível (para facilitar resgates ou para comunicar-se com a EMSI caso a radiofonia de sua comunidade não esteja em bom funcionamento), falta de repasse de medicamentos, equipamentos e insumos impedindo que o mesmo cumpra sua rotina de visitas domiciliares e acompanhamento de pacientes são queixas constantes.

As comunidades reconhecem o protagonismo dos AIS no enfrentamento à COVID-19. Torna-se, portanto,  fundamental o apoio, valorização e integração efetiva dos AIS às EMSI. A participação no planejamento e em ações de formação continuada poderá impactar positivamente na melhoria da confiança das comunidades junto às EMSI, na melhoria da promoção da interculturalidade e intermedicalidade a médio e longo prazo.

5 - Comunicação intercultural

Um dos principais obstáculos para a consolidação de uma melhor atenção à saúde indígena é a barreira de comunicação e linguística. Embora o item tenha sido considerado “ruim” (2,6 pontos), ele representa uma tímida melhora comparado à nota atribuída em 2018, que foi de 1,8 pontos.

No início da pandemia, alguns novos equipamentos de radiofonia foram instalados pelo DSEI e FOIRN, assim como pontos de internet na região do Tiquié, porém, as más condições dos equipamentos antigos somados à ausência de profissionais no polo-base ou DSEI-ARN que respondesse às chamadas das comunidades, gerou um grande empecilho.

Além das barreiras físicas (más estruturas), há também a barreira linguística, já que na região são faladas mais de 20 línguas pertencentes a três famílias linguísticas diferentes, além do português.

Segundo o Agente Indígena de Saúde (AIS) Jovino Socot da comunidade Hupd’äh de Taracuá Igarapé, a comunicação com a EMSI é uma barreira para a melhoria da atenção em saúde. Apesar de alguns técnicos falarem a língua Tukano e traduzirem as informações repassadas pelos não indígenas, muitos dos pacientes não entendem o que é falado e, segundo o AIS, “escondem as dores”, porque "não conseguem falar que eles sentem dor". O problema se torna ainda mais grave em casos de internações na CASAI e hospitais de São Gabriel e/ou Manaus.  

A melhoria na qualidade da comunicação em saúde depende não somente de melhorias na infraestrutura de comunicação, mas também da melhoria do fluxo de comunicação com quem está na ponta (principalmente AIS e lideranças locais), prevendo o retorno de dados e informações epidemiológicas relevantes para as comunidades.

6 - Interculturalidade na saúde indígena

Considerado num todo como um dos piores indicadores na avaliação regional, a “interculturalidade em saúde” parece constituir um dos maiores desafios para o DSEI-ARN.

A atuação dos benzedores (kumu e bi’id d’äh), pajés e conhecedoras de medicina indígena foi considerada por todas as comunidades como sendo a principal forma de prevenção e tratamento da COVID-19. No rio Tiquié, a utilização da rede de radiofonia por benzedores e AIS para trocarem sopro-encantamentos (benzimentos), receitas de preparo de medicamentos, e modos de tratamento da doença constituiu uma estratégia de saúde autônoma e eficaz diante da ausência da EMSI.

Segundo o líder comunitário da comunidade Pirará Poço, Sr. Celestino Rezende Azevedo, há uma preocupação por parte da EMSI com a interculturalidade, mas ainda há pouco diálogo e complementariedade nos cuidados com a saúde da comunidade: “A EMSI costuma falar sobre a importância de usar as medicinas indígenas apenas de forma genérica, sem articular as práticas de cuidado [...] não aprofunda muito".

Já Francisco Vila, liderança da comunidade Santa Rosa, considera que há pouca preocupação com a interculturalidade e complementaridade por parte da EMSI. “A equipe não reconhece o conhecimento tradicional da comunidade e nem procura saber se têm conhecedores tradicionais na aldeia”.

Com isso, o item “Integração e apoio aos benzedores” e “integração e apoio às mulheres conhecedoras de medicina indígena”, ambos receberam notas ruins (2,3). As comunidades de São Felipe e Morro do Beija-Flor (rio Castanho), São João Batista e Cucura São João (rio Tiquié) consideraram “péssimo” o apoio aos benzedores.

A recontratação de profissional de antropologia que se constitua como referência técnica para as equipes será fundamental nesse sentido. O diálogo intercultural deve considerar o papel dos especialistas nas medicinas indígenas no monitoramento comunitário de surtos e epidemias, e seu conhecimento profundo sobre as práticas de prevenção adotadas no passado. 

7 - Apoio ao Conselheiro de Saúde Indígena (CSI)

Quais as condições e apoios são dados aos conselheiros locais e distritais para exercerem seus papeis de acompanhamento das ações de saúde? Era esse o questionamento feito aos interlocutores.

A avaliação geral atribuiu a pontuação de 2,1 pontos (ruim) para o apoio aos conselheiros e 2,3 pontos para a representação no CONDISI. Esse entendimento diz respeito a não serem garantidas as condições mínimas de estrutura para que os conselheiros desempenhem seus papeis (combustível, transporte); pela falta de informações sobre as ações, decisões, planejamento e estratégias do CONDISI-ARN; e pelos conselheiros serem chamados a participar de poucas reuniões do CONDISI e, durante a participação, sentirem que não são ouvidos.

Esse resultado mostra a fragilidade do exercício do controle social que foi avaliado como “ruim” também nos anos de 2016 (1,5 pontos) e 2018 (1,0 pontos). 

Nas palavras do interlocutor de São Lourenço: "Agora toda vez, no conselho, eu reivindico, parece que não tem ouvido e nem fazem atenção”. Nas comunidades de Taracuá Igarapé, Santa Rosa do Samaúma e Sta. Rosa do Castanho, os interlocutores disseram ter pouca ou nenhuma participação no controle social, o que deve ser visto como grave pelo fato dessas comunidades reunirem famílias das etnias Hupd’äh e Yuhupdëh, povos que possuem grande vulnerabilidade epidemiológica.

O conselheiro local de Serra do Mucura relatou que a EMSI esteve bastante ausente durante a pandemia; não fizeram palestras e apenas deixaram azitromicina de medicamento para o tratamento da COVID-19.

O apoio aos conselheiros de saúde, locais e distritais, precisa ser priorizado pelo DSEI-ARN para que eles possam efetivamente monitorar as ações de saúde, contribuir com a promoção da interculturalidade, indicar áreas prioritárias e apontar problemas e formas de superação a partir do contato direto com os pacientes, AIS, e EMSI.

Uma análise mais aprofundada dos indicadores obtidos através dos Cartões de Pontuação Comunitária e as entrevistas realizadas com lideranças podem ser encontradas na Plataforma de Monitoramento Comunitário da Qualidade da Saúde Indígena (PMCQSI). Nessa plataforma, será possível encontrar 13 relatos sobre como está se dando o enfrentamento da Covid-19, demais epidemias e problemas de saúde nas comunidades da região, acompanhados dos Cartões de Pontuação Comunitários, fotos, mapas de geolocalização e ádios das entrevistas nas línguas Tukano e Português. Dois textos analíticos compõem também o conjunto de materiais disponibilizados pela plataforma e apresentam os principais resultados do monitoramento comunitário, permitindo o entendimento específico da situação regional, das comunidades das regiões dos rios Tiquié e Castanho e dos povos considerados pela FUNAI-SESAI como de recente contato: Hupd’äh e Yuhupdëh.

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